Borboleta

Eu costumava viver num grande castelo amarelo, no meio das borboletas que vivem um só dia, longe de tudo, perto de mim. Tão perto que nem falava comigo, porque antes de pensar, já sabia que o ia fazer. Então passava muito tempo só a contemplar as borboletas, que de manha estavam vivaças e a fazer corte, e ao fim da tarde estavam mortas. Passava o tempo sem mim, porque me limitava a sentir, a cheirar, a tocar. Não precisava de mais nada, e era feliz no meu grande castelo amarelo.

No meu castelo via todos os montes silvestres, as árvores e os jardins floridos que o rodeavam. Haviam também Homens, eu sabia que eram Homens pois eram parecidos comigo; os livros da biblioteca diziam o mesmo, mas não me sentia um Homem. Também existem os Pássaros, mas isso não quer dizer que uma andorinha fosse igual a um melro. Sentia-me só Eu. E nada mais importava para além disso tudo. Tudo era tão simples de entender, tão fácil de desfrutar! Todas as coisas eram sempre novas aos meus olhos, e tirava prazer disso, até porque o melro de ontem não era igual ao melro de hoje. Movimentavam-se de forma diferente, bicavam de outro modo, portanto nunca tinha tempo de pensar. Só de descobrir.

Numa tarde de Verão, em que a chuva me tocava através das conversadeiras e as andorinhas faziam voos rasantes ao castelo, comecei a pensar. E se eu fizesse o mesmo? Se eu pudesse voar como as andorinhas e gozar a chuva de uma maneira que nunca tinha experimentado?

Foi a minha primeira questão. E depois seguiram-se muitas outras, umas atrás das outras “porque não tenho asas?”, “porque não sou uma andorinha?” ou “o que estou a fazer?”. Estava a pensar. E, de repente, tudo o que contemplava deixou de ter importância para mim, e comecei a passar os dias trancada na biblioteca a fazer estudos sobre os animais, depois sobre o Homem, posteriormente sobre psicologia, até estudei filosofia, e nenhum desses meus estudos foram proveitosos. Quando finalmente dei por acabados os meus estudos, já tinham passados muitas primaveras sem observar nada para além das letras escritas nos papéis amarelos de velho, como o meu castelo.

Quando saí da biblioteca pela primeira vez, houve qualquer coisa em mim que estremeceu; o castelo já não era amarelo, mas sim cinzento. As conversadeiras estavam gastas do vento e dos anos, e apercebi-me do Tempo. Já não contava as primaveras, mas sim os anos que já pesavam sobre mim. Toquei no meu rosto e apercebi-me que não era mais aquela pele macia e branca, mas cortiça emoldurada por uns cabelos brancos muito fininhos e frágeis. Afinal tinham passados muitos anos, séculos. Sabia tudo o que estava escrito nos livros, mas tinha chegado à conclusão que não havia resposta nenhuma para a minha pergunta. Foi a primeira vez que me senti triste. Outro novo sentimento me alvoraçou; subi à torre de menagem com a dificuldade de quem suporta séculos na alma, a passos lentos, e cada passada o meu coração ficava mais apertado. Quando por fim cheguei ao topo, vi qualquer coisa de medonho. Dei três passos para trás e caí, mas sabia que tinha que sair daquela visão, e desci. Desci numa fúria em câmara lenta, como se estivesse a ser apunhalada nas costas mil vezes de cada vez, numa tortura perversa de quem tem prazer em fazer sofrer. Meio atordoada, sentei-me nas ruínas da capela; eu nunca soube para que esse edifício servia, mas sentia-me reconfortada nele. Esperava eu que aquele sítio tão vistoso e tão belo me trouxesse algum tipo de paz, mas pelo contrário; sentir raiva por ter desperdiçado séculos a ler em busca de uma resposta, e agora velha como aquele sítio que não era mais o meu castelo, senti a cabeça a arder e os olhos inchados, porque tinha estado a chorar. As lágrimas caiam copiosamente na minha cara de velha, e espalhavam-se nas minhas rugas, para que entrassem de novo na minha pele. Senti derrota, e subi de novo para as conversadeiras.

Sentei-me lá, a pensar incessantemente no “e se…?” e no que tinha visto na torre de menagem: o meu castelo, outrora rodeado de montes silvestres, arvores e jardins floridos, estava agora rodeado de casas estranhas, onde viviam Homens e me invadiam o meu espaço. “E se eu pudesse voar para longe daqui, fora do Espaço e do Tempo?” Fiquei a reflectir algum tempo nessa pergunta, até que adormeci. Não sei quantas horas ou anos, mas quando acordei não pensei; estava um dia maravilhoso, com um Sol radiante, que enchia o meu castelo de cor. As andorinhas estavam felizes, e eu também me senti feliz por vê-las tão alegres. Uma delas pousou junto a mim e pude ver os olhos dela, negros, profundos, e cheios de estórias para contar. E ficamos as duas, em silêncio, a escutarmos a respiração uma da outra, até não precisar de mais nenhum sentido que não a audição. Deixei de ouvir os carros a passar, o vento a soprar. Só ouvia o coraçãozinho dela a bater rápido e o meu a ficar cada vez mais acelerado, até se tornar igual ao dela. Por fim abri os olhos, e ela estava a olhar para mim. Ela levantou voo, e eu não pensei mais e fui atrás dela, e atirei-me.

Por um segundo pensei nas borboletas que vivem só um dia, para encantar os olhos dos outros com a sua beleza. Quando abri os olhos estava pronta para morrer, mas algo aconteceu de inexplicável; eu estava a voar junto daquela andorinha, e era igual a ela. Olhei para mim, com as minhas asas negras e segui-a, com os ventos do sul.

Comentários

Anónimo disse…
Deliciei-me a ler o teu conto, por vários motivos. Um deles é ver-te usar termos dignos de uma estudante de arqueologia (tinhas jeito menina..). Por outro lado, é a história em si, que nos permite testemunhar como vai a tua alma... e não posso deixar de sorrir de felicidade ao ver-te voar com as andorinhas, pois é para isso que nasceste - voar com os teus sonhos e seres LIVRE!

Fico à espera de mais contos, como um puto antes de adormecer.

T.E.U.

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