Qualquer coisa

(ela está na cama, num quatro pequeno, atolado de mobília, sentada e tapada com cobertores. Tem o computador no colo e escreve com uma mão. A outra está escondida debaixo dos cobertores. Enverga um pijama e um casaco de lã. Ouve musica de circo [dark cabaret])


Ela – Meus queridos leitores, de tão aborrecida que estou, coisa que dura há ano e meio treze dias e algumas horas, junta-se uma vontade tão grande de fazer fazer fazer, mas dou-me ao prazer de não fazer nada porque no fundo sou um caracol que foi meio pisado e não tem sitio onde dormir. Um saltimbanco sem o ser, um analfabeto de vontades. Não vou estar com rodeios, a culpa deste aborrecimento crónico é minha e só minha. O aborrecimento também pode se tornar no ócio, e o ócio desculpa tudo.


(chega um gato dengoso e gordo que se aninha junto a ela)


Bem, vejo que o meu discurso atrai gatos, não sei se por eles serem seres divino que entendem as magoas do Homem ou se por serem gatos e gostarem do quentinho. Tento ser eloquente mas não há nada de eloquente ou transcendente. Somos animais e fazemos as coisas por prazer e não por um propósito.


(a gata sai da cama para ir comer um vomitado que deixou espalhado no chão. Ela repara que cheira mal da boca.)


Preciso de tomar um banho e cortar os pêlos das pernas. E arrancar o bigode também. Cortei as unhas porque já não conseguia pegar nas coisas. E vocês pensam “ela fala a sério?” Compete a vocês determinarem isso, como leitores atentos ou não atentos.

Ainda não entendi o que faz uma pessoa ler as coisas dos outros.

Ainda não entendi o que me faz escrever para os outros. (risos) Estava ansiosas para escrever o que eu já sei tão bem – esta troca de prazeres entre o exibicionista e o voyeur é de salutar; é algo que acontece desde o inicio dos tempos. Só que agora existe em conceito.

E quero agradecer ás pessoas que ainda me lêem; porque, de facto, não estou a escrever nada de extraordinário. É fácil parecer que se sabe muita coisa quando não se sabe nada. Basta escrever muito; a maior parte das pessoas desiste logo no início; os mais resistentes, ou os mais críticos, insistem em ler até ao fim, só para ver se aquilo vai dar em alguma coisa. Comparando ao “Processo” de Kafka, o que escrevo é assim também, uma pescadinha de rabo na boca; quando pensares que vai acontecer alguma coisa não vai acontecer nada. Se não leste “O Processo” não perdeste nada, digo-te já; a estória acaba como se iniciou. E pronto – acabei de cometer um suicídio literário; vão chover mil comentários de apaixonados fervorosos. É sinal de que chegaram até aqui.

Estou aborrecida. Isto é o meu aborrecimento. Escrever coisas ao acaso.

Comentários

Anónimo disse…
um premio... o meu blog nunca ganhou nenhum premio... aquilo tem uma mistela de ideias e de coisas... blargh! e realmente dei-lhe férias por causa disso mesmo...

de não ter nada para fazer.. e só sairem disparates e idéias tudo a mistela..

eu tb deixo as unhas crescerem, também preciso de tirar os pelos das pernas, do buço (e de outros sítios..)

e também já estou neste ócio á tempo de mais... e ja estou irritada c tanta coisa na minha cabeça e nada a agir....

vai-te embora chuva.....

malui

p.s. obrigado plo prémio.
nuno medon disse…
Olá! Tu és uma escritora e jogas muito bem com as palavras. Não sei a parte da gata é da tua imaginação ou se é realmente verdade. Mas sim, tens uma veia de escritora. Tens que pensar em publicar um livro, recheado de Estórias. Quanto ao prémio, tu mereces. Beijos e as melhoras! Unhas grandes ás vezes dão jeito. Agasalha-te porque está frio.
Damour Pourtoi disse…
Não sou escritora... Custa-me muito a pensar. E a gata não foi invenção... Tudo o que escrevi estava mesmo a acontecer.
Chuva, frio... Este é o inverno mais longo da minha vida.

Mensagens populares