Freak Show
Já há um tempo que penso em escrever sobre isto, mas nunca o fiz, não sei porquê… Eu vejo coisas tão anacrónicas na fisio (e quando digo fisio estou-me a referir a todas as terapias que faço) que parece que quando entro e os doentes vão chegando, que estou num cabaret de freak show. Como se eu fosse uma antiga atracção que não serve mais para fazer o espectáculo.
Não fiques chocado; é algo que sinto e não adianta criticares-me por isso; só eu sei, só eu vivo aquilo todos os dias. Nada me impressiona, agora. Não me impressiona ver homens com as mãos calejadas pelo trabalho numa cadeira de rodas e com uma fralda; não me impressiona ver um miúdo de 17 anos com paralisia cerebral que tem o corpo todo atrofiado por não se mexer; não me impressiona ver uma senhora a babar-se numa cadeira de rodas porque teve um AVC e não consegue controlar os músculos da face. Chocar-me-ia, certamente, noutra altura da minha vida, mas agora não. Queira ou não queira tenho handicaps, ou seja, deficiências motoras, por momentâneas que sejas, ou talvez não. Não sei, e ninguém pode saber. Independente disto quero deixar bem claro que SOU COMO ELES, alias, sou como tu, que és igual a eles, e por isso pára de me dizer que eu não sou deficiente porque sou! Neste momento sou! Quero que isto fique bem claro, e passo a explicar:
Compreendo o que me queres dizer com “não és deficiente nenhuma”. Os que me conhecem há anos, vêem a mesma Daniela de sempre, mas não sou. Para os que me conhecem agora sou “a Daniela, aquela que teve um AVC”, e tenho de concordar com eles todos - Sou a Daniela do AVC, mas que continua a mesma. Tenho de aprender a utilizar o meu corpo agora e não estar à espera que ele fique melhor para o fazer, tenho de usar o meu corpo com deficiências porque elas existem e não posso ignora-las e fingir que nunca aconteceu nada. Há sempre a esperança de ficar a 99%, e se for só daqui a anos? E se nunca for? Recuso-me a afligir mais por causa disso, aceita-me como sou agora. Já tive muita vergonha de estar deficiente. Chega. Não estejas sempre a criticar-me por dizer que sou deficiente porque, de facto, sou.
As pessoas olhem para mim, e daí? Tirei Teatro por alguma coisa, e agora a minha vida é um palco permanente! Cansa-me, claro, fico revoltada por determinadas coisas. Mas não há maior agonia neste momento que estar presa a um sítio. Tudo o resto é espectáculo, meu amigo, e gratuito! Daí eu falar no Freak Show. Os artistas que fazem esse tipo de espectáculos não têm qualquer tipo de problemas com a característica que faz deles “feaks”, ou seja, pessoas fora do comum que fazem coisas extraordinárias. Existe uma força, um optimismo, uma esperança nos meus colegas da fisio que nunca tinha visto. É o sentimento primário de sobrevivência no seu lado mais físico. Somos os “freaks” da esperança e da determinação. Somos “freaks” porque aprendemos que a vida em si não tem importância. Como vivemos a vida, aí sim. A vida existir por si só, não precisa de ti para existir. Agora basta que algo a faça mexer, e neste Freak Show sou a porteira, a que recebe os bilhetes, a apresentadora. Estou nem num lado nem no outro. Estou algures entre o extraordinário e o normal, e confesso que nunca desejei tão ser normal como agora. Contudo, apesar disso, tenho momentos de puro arrebatamento pela vida, pela simplicidade da vida como, por exemplo, voltar a sentir. Aprender a mexer-me, mas consciente de cada músculo, tendão que tenho que usar para fazer determinado movimento.
Estou a aprender a lição mais importante da minha vida e tu, tu e até tu fazem parte desta historia. Então não me critiques; goza estes momentos comigo, sejam bons ou maus, porque é a tristeza que faz a felicidade.
P.S.: Claro que há aqueles que desistiram. São cadaverer à espera da morte. Mas isso é assunto para outro post...
Não fiques chocado; é algo que sinto e não adianta criticares-me por isso; só eu sei, só eu vivo aquilo todos os dias. Nada me impressiona, agora. Não me impressiona ver homens com as mãos calejadas pelo trabalho numa cadeira de rodas e com uma fralda; não me impressiona ver um miúdo de 17 anos com paralisia cerebral que tem o corpo todo atrofiado por não se mexer; não me impressiona ver uma senhora a babar-se numa cadeira de rodas porque teve um AVC e não consegue controlar os músculos da face. Chocar-me-ia, certamente, noutra altura da minha vida, mas agora não. Queira ou não queira tenho handicaps, ou seja, deficiências motoras, por momentâneas que sejas, ou talvez não. Não sei, e ninguém pode saber. Independente disto quero deixar bem claro que SOU COMO ELES, alias, sou como tu, que és igual a eles, e por isso pára de me dizer que eu não sou deficiente porque sou! Neste momento sou! Quero que isto fique bem claro, e passo a explicar:
Compreendo o que me queres dizer com “não és deficiente nenhuma”. Os que me conhecem há anos, vêem a mesma Daniela de sempre, mas não sou. Para os que me conhecem agora sou “a Daniela, aquela que teve um AVC”, e tenho de concordar com eles todos - Sou a Daniela do AVC, mas que continua a mesma. Tenho de aprender a utilizar o meu corpo agora e não estar à espera que ele fique melhor para o fazer, tenho de usar o meu corpo com deficiências porque elas existem e não posso ignora-las e fingir que nunca aconteceu nada. Há sempre a esperança de ficar a 99%, e se for só daqui a anos? E se nunca for? Recuso-me a afligir mais por causa disso, aceita-me como sou agora. Já tive muita vergonha de estar deficiente. Chega. Não estejas sempre a criticar-me por dizer que sou deficiente porque, de facto, sou.
As pessoas olhem para mim, e daí? Tirei Teatro por alguma coisa, e agora a minha vida é um palco permanente! Cansa-me, claro, fico revoltada por determinadas coisas. Mas não há maior agonia neste momento que estar presa a um sítio. Tudo o resto é espectáculo, meu amigo, e gratuito! Daí eu falar no Freak Show. Os artistas que fazem esse tipo de espectáculos não têm qualquer tipo de problemas com a característica que faz deles “feaks”, ou seja, pessoas fora do comum que fazem coisas extraordinárias. Existe uma força, um optimismo, uma esperança nos meus colegas da fisio que nunca tinha visto. É o sentimento primário de sobrevivência no seu lado mais físico. Somos os “freaks” da esperança e da determinação. Somos “freaks” porque aprendemos que a vida em si não tem importância. Como vivemos a vida, aí sim. A vida existir por si só, não precisa de ti para existir. Agora basta que algo a faça mexer, e neste Freak Show sou a porteira, a que recebe os bilhetes, a apresentadora. Estou nem num lado nem no outro. Estou algures entre o extraordinário e o normal, e confesso que nunca desejei tão ser normal como agora. Contudo, apesar disso, tenho momentos de puro arrebatamento pela vida, pela simplicidade da vida como, por exemplo, voltar a sentir. Aprender a mexer-me, mas consciente de cada músculo, tendão que tenho que usar para fazer determinado movimento.
Estou a aprender a lição mais importante da minha vida e tu, tu e até tu fazem parte desta historia. Então não me critiques; goza estes momentos comigo, sejam bons ou maus, porque é a tristeza que faz a felicidade.
P.S.: Claro que há aqueles que desistiram. São cadaverer à espera da morte. Mas isso é assunto para outro post...
Comentários
(tirado do blog ana de amsterdam. postado no mesmo dia que o Freak Show)
Almoço, todos os dias, sozinha no refeitório. Conheço os funcionários que lá trabalham. Acompanham com entusiasmo a minha gravidez. Sugerem alimentos saudáveis. Não me deixam comer pastéis de bacalhau. Servem-me couves de bruxelas e brócolos com uma abundância inusitada. Escolho sempre uma mesa junto do balcão das sobremesas, virada para o corrimão dos tabuleiros e, dali, observo-os. Há a Rosa, a minha patrícia de olhar aflito. A Fátima, que é desbocada e que, com excepção dos homens mais velhos de fato e gravata, trata por tu toda a gente. A rapariga da caixa, cujo nome não sei, tem os dentes podres, as unhas roídas, cicatrizes antigas no rosto. Raramente sorri. Traz sempre os olhos inchados. Como se tivesse passado a noite a chorar. Há também a D. Conceição, a chefe do refeitório. Maneja as pinças da carne com autoridade, o peito inchado como uma generala comandando um exército. Gere os legumes com avareza. Justifica, com azedume, a secura da carne de vitela. Observo, sobretudo, o João, o rapaz das sopas. Há um empenho comovente nos seus gestos. A voz entaramelada, gutural, arrastada, indicia uma qualquer deficiência. Uma deficiência leve, que não sei, nem quero, catalogar, mas que o torna diferente, à margem, anormal. Usa óculos de lentes grossas, permanentemente sujas. Está sempre a piscar os olhos. A pele, de tão oleosa, escorre gordura sebácea e brilha sob a luz branca do refeitório. Invejo-lhe a eficácia e a precisão dos gestos. Pega na concha, mete-a na panela, dá duas ou três voltas para dar corpo ao caldo, trá-la cheia, na vertical e, assim, naquele aprumo, com um rápido movimento do pulso, quase imperceptível, faz verter o líquido na tigela. Nunca respinga para fora. Nunca suja os bordos dos pratos. Todos os dias me entrega a tigela, sorrindo de satisfação. O seu sorriso parece dizer “Sou excepcionalmente bom naquilo que faço”. É verdade. É mesmo.
(A normalidade é um conceito injusto. E aborrecido. Quantos anormais há entre os normais? Muitos.)
http://ana-de-amsterdam.blogspot.com/2008/05/sopa.html
A "nossa" Morganice nunca desite é indestrutivél!!! Foi assim que te conheci, foi assim que me tornei teu amigo, foi isso que sempre admirei em ti e foi isso que sempre me esforcei para que aprendesses... Tenho pena de não estár já contigo todos os sábados à tarde como durante aquele ano, nem de conviver contigo como dantes... Mas sei que não vais desistir e sabes que sempre que precisares estarei cá para o que precisares.
P:S.: Continuo a querer que vás para chefe dos exploradores como dizias dantes...e podes vir ter comigo sempre que quizeres matar saudades...só é pena é não serem os teus "Fantásticos Exploradores"... Mas também...vocês cresceram!
Fer..