Autofagia
Conseguia ter acesso a este mundo tão cedo porque a minha irmã fazia questão que me apresentar isto tudo, dizendo-me o nome das bandas, dos elementos dela e até da história da banda. Então entre passeios de bicicleta e "a guerra dos panos molhados", as certezas que ela me dava que não haveria problema quando eu mijava na cama, foi uma comunidade de miúdos que se apoiavam uns aos outros da maneira que conseguiam, que usufrui também, graças à minha irmã.
Não digo que "na minha altura é que era bom" porque não era, era diferente. Gostava de dançar, queria ser bailarina e pianista, sonhos quase impossível para criança de bairro. Quando fiz 10 ou 12 anos a minha irmã ofereceu-me um teclado em 2a mão com o primeiro ordenado dela, oh dias felizes! "Comprava" (comprar, naquela altura, significava muitas vez colocar a revistas dentro do Blitz quando era jornal) umas revistas "teclado mágico", acho que era assim o nome dela, que não me serviu de nada porque não sabia ler pautas. Comecei a inventar então, condenado-me ao fracasso por causa da ineficácia da colocação das mãos. Há luz do presente, talvez tenha sido melhor assim.
A cena metal, punk (grunge?) era forte na Marinha nos anos 80 e 90, muito provavelmente trazido pelos agarrados que vinham aqui parar. Quase em cada casa no bairro morava um agarrado e/ou um prqueno traficante. De forma mais ou menos orgânica a música era um testemunho da vida, nessa altura haviam muitas bandas, músicos mais ou menos brilhantes, mais ou menos fodidos - não procuravam fama, procuravam um escape. Já da minha geração, ainda me lembro do olhar do Calvete mais novo, de olhos brilhantes e desafiadores, a furar com o olhar o fundo da associação ou bar, quase que a lutar contra os demónios, completamente imerso, sem querer saber do público (raro nos outros músicos da Marinha). Não encontre um video dele para colocar aqui. Nem sei o que é feito dele agora.
Soube que o Kurt se tinha suicidado e levei como ofensa. Era tão miúda que não consegui perceber o ensejo de alguém de morrer. Tinha uns 6anos nessa altura, acho eu. Foi como se tivesse perdido um dos meus amigos imaginários (sim, tinha muitos. Parece que a solidão esteve sempre meio à espreita nos cantos durante a minha vida. Talvez ela seja o meu derradeiro amigo imaginário - pelo menos ainda não se foi embora).
Ainda ouço a Antena 2, é a minha estação por default quando conduzo. A minha cabeça não para de criar associação do eu agora com o eu de antes. Parece que não mudei muito (nisto ja são 6h22 da manhã). Não sei que possa fazer mais, parece que me estou a comer por dentro.
Autofagia, tinta sobre pele, MMaria Abrantes, 2025
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