Autofagia


Estou a ouvir Nirvana, que não costumo. Tenho muitas memórias de mim bem miúda, e a maior parte delas são do quarto onde tinha a aparelhagem. A minha irmã trazia muitas k7s do ciclo, isto no início nos anos 90, que a malta gravava meio à toa, fazendo mixtapes com garotos podres, sonic youth, cure, no fundo tudo o que a malta conseguia meter a mão. Haviam sempre os putos com mais dinheiro (os surfistas) que piratiavam as K7s pós amigos, outros ficavam de sentinela durante o Hipertensão (programa de metal na rádio) para gravar o programa e a malta fazia circular, o que acabava por criar estas mixtapes bem aleatórias- aos olhos de hoje. Era prática regular ter k7s de reserva just in case. Eu gravava muitos artistas que passavam na Antena 2, sobretudo para ter para poder dançar (ia ser bailarina antes do mundo) e lembro-me de fazer pontas na alcatifa cinza do quarto. A dança era uma alternativa de expressão quando não se podia falar. Anos mais tarde vi umas sapatilhas de ponta pela primeira vez - a minha prima da Alemanha, que esteje a viver conosco algum tempo, tinha umas penduradas na cama. Um dia enchi-me de audácia e entrei no quarto dela e calcei-as - eram o n. 38, ainda me lembro. Eu nem me lembro quantos anos tinha, na verdade. Calcei-as e senti-me tão feliz que ainda hoje me lembro, mas foi curto - uma das fitas saiu, enchendo-me de horror. No pânico, porque não sabia que castigo me aguardava, colei a fita à sabrina e coloquei tudo como estava. Claro que a minha prima reparou e perguntou-me se tinha sido eu, ao que prontamente lhe disse que sim, tinha sido eu. Faz-me prometer que não voltaria a tocar nelas e nunca mais entrei no quarto dela. A culpa foi castigo mais que suficiente.

Conseguia ter acesso a este mundo tão cedo porque a minha irmã fazia questão que me apresentar isto tudo, dizendo-me o nome das bandas, dos elementos dela e até da história da banda. Então entre passeios de bicicleta e "a guerra  dos panos molhados", as certezas que ela me dava que não haveria problema quando eu mijava na cama, foi uma comunidade de miúdos que se apoiavam uns aos outros da maneira que conseguiam, que usufrui também, graças à minha irmã. 

Não digo que "na minha altura é que era bom" porque não era, era diferente. Gostava de dançar, queria ser bailarina e pianista, sonhos quase impossível para criança de bairro. Quando fiz 10 ou 12 anos a minha irmã ofereceu-me um teclado em 2a mão com o primeiro ordenado dela, oh dias felizes! "Comprava" (comprar, naquela altura, significava muitas vez colocar a revistas dentro do Blitz quando era jornal) umas revistas "teclado mágico", acho que era assim o nome dela, que não me serviu de nada porque não sabia ler pautas. Comecei a inventar então, condenado-me ao fracasso por causa da ineficácia da colocação das mãos. Há luz do presente, talvez tenha sido melhor assim.

A cena metal, punk (grunge?) era forte na Marinha nos anos 80 e 90, muito provavelmente trazido pelos agarrados que vinham aqui parar. Quase em cada casa no bairro morava um agarrado e/ou um prqueno traficante. De forma mais ou menos orgânica a música era um testemunho da vida, nessa altura haviam muitas bandas, músicos mais ou menos brilhantes, mais ou menos fodidos - não procuravam fama, procuravam um escape. Já da minha geração, ainda me lembro do olhar do Calvete mais novo, de olhos brilhantes e desafiadores, a furar com o olhar o fundo da associação ou bar, quase que a lutar contra os demónios, completamente imerso, sem querer saber do público (raro nos outros músicos da Marinha). Não encontre um video dele para colocar aqui. Nem sei o que é feito dele agora.

Soube que o Kurt se tinha suicidado e levei como ofensa. Era tão miúda que não consegui perceber o ensejo de alguém de morrer. Tinha uns 6anos nessa altura, acho eu. Foi como se tivesse perdido um dos meus amigos imaginários (sim, tinha muitos. Parece que a solidão esteve sempre meio à espreita nos cantos durante a minha vida. Talvez ela seja o meu derradeiro amigo imaginário - pelo menos ainda não se foi embora).

Ainda ouço a Antena 2, é a minha estação por default quando conduzo. A minha cabeça não para de criar associação do eu agora com o eu de antes. Parece que não mudei muito (nisto ja são 6h22 da manhã). Não sei que possa fazer mais, parece que me estou a comer por dentro.

Autofagia, tinta sobre pele, MMaria Abrantes, 2025




Comentários

Mensagens populares