Transumanismo ou A Falácia do Homem Novo

Ao correr do tempo tive a oportunidade de me cruzar com muitas pessoas que me asseguraram que eram pessoas melhores, ou que estavam a trabalhar para isso. Tenho pensado nessa questão e o motivo pelo qual sempre que ouvi isso me dava, simultaneamente, arrepios na espinha e náuseas. Um pouco como aquele chavão que toda a gente sabe agora o quão tóxico é "ser a melhor versão de ti mesmo". A noção de (chamemos-lhe) Homem Novo não é apenas tóxica, é perigosa, mais perigosa que aquele pessoal do fitness, igreja ou grupos fraternais e todos estes exemplos têm um denominador comum,que é o sentimento de pertença a algo superior, que essas pessoas estão ACIMA do comum mortal. Muitos pensadores se debruçaram sobre este tema, talvez o mais representativo desdes movimentos será "Assim fala Zaratrusta". É interessante ver que essa narrativa do Nietzsche foi usada de forma tão perniciosa (como a própria Bíblia). O Super Homem de Nietzsche não é aquele que está ACIMA do homem, e digo isto porque o Nietzsche escreveu esse livro no final da sua vida, doente e na miséria enquanto vivia em reclusão nas montanhas. A má interpretação do Super Homem de Nietzsche como cada deus de cada religião são vistos actualmente como o píncar do homem moral. Dai surge o conceito de transumanismo, "para além do homem", que é servidos de bandeja em doses homeopáticas em todos os lugares - na publicidade, nas redes sociais, na televisão etc. Às tantas as pessoas acreditam que é possível essa mudança nem qualquer noção que estão, de facto, a condicionar-se. E, às tantas é uma bola de neve - chega uma altura em que alguns, por qualquer motivação, querem mudar (geralmente devido a sentimentos de culpa, baixa auto estima ou vergonha). Como não há como destrinçar padrões de comportamentos sem dor, opta-se pelo penso rapido da validação alheia. Vou ser mais especifica agora, porque isto é algo que vejo a acontecer a homens. As mulheres geralmente procuram profissionais e existe um grande espaço para a vulnerabilidade entre mulheres. Os homens encontam-se mais em risco de cair nesta falácia - ainda existe muito a noção que o homem tem que ser isto ou aquilo e são os próprios homens a perpetuar essa ideia. Enquanto que as mulheres sente-se seguras a partilhar as suas questões com outras mulheres, nos homens isso não acontece porque ainda existe a ideia que isso "é gay" e que têm que provar que não o são. OBS: Claramente que estou a generalizar, casa indivíduo é um indivíduo mas que fizermos um zoom out conseguimos observar este tipo de comportamentos ligado à biologia, pelo amor à análise. Continuando. O perigo desta falácia reside não só no facto de que as pessoas que optam por esta abordagem não só não resolvem as inquietações existentes como cobrem a pessoa de um sentimento de legitimidade para se afirmarem com júbilo na mesma coisa que os perturbava, tornando a falha como virtude a ser celebrada porque pelo menos são honestos (não o são, claramente, e eles próprios sabem disso). Nessa linha de pensamento surge o "novo-eu" que infelizmente não é mais que uma visão egocentista de uma falha de carácter. E aqui vemos o outro perigo: esta nova abordage retira o questionamento, acalma a culpa então tudo o que é feito é bem feito porque são pessoas virtuosas, ACIMA do homem comum. Plot twist, essa abordagem não os deixa mais felizes porque não há nada neste mundo que pare os pensamentos de inutilidade, medo, de fracasso ou de culpa, por exemplo - a falta de controlo dos impulsos e a falta de reconhecimento das acções traz muitas emoções, como a culpa e a vergonha. E aí, nessa luta interna, torna-se quase sempre como prova a atribuição de culpa nos outros (pessoas, organismos, instituições, etc). Para lidar com o conflito interno projecta-se ("a culpa desta merda toda é que a malta não quer trabalhar" já dizia o Zé Mário, como exemplo). Daí ao discurso de ódio é um salto: os incels, como exemplo mais recente. Os que caminham este caminho deixam de ter volta - há muito a perder. A camada de ego não sarou a ferida e quando chega à necrose só existem, na percepção do indivíduo, duas opções: violência ou suicídio (ou ambos. O suicídio não tem que ser um episódio só, pode ser a escolha repetitiva de acções que encerram em si um carácter destruívo). E as pessoas vivem na esfera desses super homens são tambem afectadas. Os super homens são bons no verbo e mesmo que a beleza se dissipe, vão conseguir sempre atrair pessoas para a sua esfera. É uma existência miserável no fundo, porque todos esses super homens estão sozinhos na sua dor. Na medida que penso nisso sinto alguma piedade, o sentimento de controlo de "fix them". Esse é um trabalho que ninguém pode fazer por eles e o melhor mesmo é a inevitável despedida (que sabe bem, no fundo). O super homem é aquele que se conhece na sua inteira nudez intelectual. É aquele que arranca o coração do peito e vê o quão pequeno e irrelevante é. É humilde porque sabe que não é perfeito e nunca o será e não pode pedir que o outro o seja. É empatico porque na sua humildade consegue sentir a dor alheia e antecipar-se a ela antes do acto. O super homem será um processo e não um destino. Por isso descofiem sempre de quem vos diz que é um "homem-novo". Não existe, não é uma epifania, é uma construção. As pessoas quando mudam nem se aparecebem logo e nao o anunciam. A própria anunciação "não sou a pessoas mais aquela pessoa" é presunçosa. Continuam a ser, como todos nós, a diferença reside apenas na presunção que a renegação dos próprios erros e falhas faz com que estes deixem de existir. Não deixam.

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