Maria-Homem

Hoje enchi um lago. E tenho mais para um oceano. Acho que não tenho muito jeito para o animal humano. A minha armadura está ferrugenta e a espada, partida. Parece-me que estou próxima de vestir o colete de forças. Os meus fartos jantares (dignos de reis) são as pedras da calçada. Acordei com as minhas dores de estimação mas deram-me outra para acarinhar. É selvagem, tenho que a domar com todas as minhas forças e (nem sei onde tenho este poço delas mas arranjo sempre um pouco para me socorrer naquele instante) da garganta não passa. Pelo menos quando o quero. Lutamos, até, um pouco. Mas por fim adormeceu, sabendo que quando abrir os olhos daqui a um instante, ele está já acordado e a olhar para mim, em pose de ataque. E quando me olhar ao espelho ele estará espelhado no relevo dos meus olhos e na profundidade dos mesmos. E será mais um dia de combate, até ele ficar no canto dele e olhar para mim só para me relembrar do que é. Porque o é. E eu não queria mais nenhum - nunca se quer, mas para viver as alegrias felizmente tem que se receber um. Quando as orquídeas viram rosas. Tudo tem a sua beleza, por isso gostamos do sal que fica - por muitos que os espinhos nos sangrem. Até nos picamos pelo prazer na dor. Portanto não é tudo mau. Apenas não gosto de pontapés na cara quando já se está no chão. Chega-se ao ponto da bota te atravessar até ao teu âmago, e sentes o teu ser a dissolver-se em moléculas. Aí tudo é tão mais difícil de se recompor... Não impossível, mas leva tempo, e o tempo a apanhares-te do chão, assim, tão pequeno, e tu, tão incompleto, parece demasiado. Maria-Homem, pensei no outro dia. Estava sentada ao balcão do café, cigarro, bica, e a minha solidão. Como em tantos dias. Como todos os dias. Maria-Homem, eu. Velha como o Sr. Zé que vai ao café e faz exactamente a mesma coisa que eu. Chega. Vou dar o nó aos meus pensamentos e apagar-me o máximo que conseguir (mesmo com as palavras que me cortaram a ecoarem lá dentro). Sustem o fôlego! -----------------------------------

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