Coração Gourmet

O meu quarto tem cortinas pesadas verdes-escuras. Nos cantos, bolores escorrem das paredes grossas que escondem os segredos que todos sabem mas que ninguém comenta. Uma agenda carregada pesa-me e com ela os quilos de muco e sangue das palavras que engulho. "Para ter um Futuro". O meu Futuro é um dia de nevoeiro que mesmo que D. Sebastião aparecesse ninguém dava pela sua presença. A incerteza é o que guardo de mais certo no bolso. Cada dia levo uma pá carregada para a cova da antiga Daniela. Não tenho força para tanta desistência... o rio não me leva, afoga-me, devora-me, rasga-me a pele, dilacera-me a par da minha passividade. Morreram demasiadas coisas de mim. Momentos, pessoas, sonhos, forças... foram com as brisas frias que criei a minha volta. Escrever magoa-me de um modo tão indescritível que nem as minhas lágrimas compreendem. O meu coração está esmagado como um naco de frango prestes a ser cozinhado de um modo "gourmet". Podem enche-lo das mais requintadas iguarias mas nunca passará de um músculo que outros usam para se banquetear. E vejo, porque sou eu que corto o tórax para facilitar a confecção. Procuro-me nos outros, mas não me encontro. Procuro-me em mim, mas só vejo um papel escrito "Adeus" com a minha caligrafia da primária. Ás vezes penso que me rasgo em mil e me dou a todas as pessoas que guardo, e que pairo no mundo. Talvez a minha incessante procura de felicidade seja infortuito, pois sempre que me procuro acabo por dar-me. E mesmo quando sinto que estou seca, há sempre um pedacinho escondido guardado para aquela pessoa. Então penso, se toda eu estou em movimento, para quê procurar-me? Se eu sou apenas um corpo que não produz nada mais do que dor a mim mesmas, qual é o propósito de continuar a lutar? São 4h33 na minha prisão. 16h33 na minha alma. 5h33 no meu pensamento. São 4h33 em Portugal.

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