Merda Sublime
Eu gostavas dos dias frios com sol. Não havia coisa que mais me aprazia do que abri o estore e ver um sol radioso, mesmo que metesse a mão na janela e sentisse um frio de gelar. Os dias têm sido assim, e abro o estore para levar com um dia de esperança. E ponho a mão por uma frincha da janela e vejo; o frio cortante está lá. Mas já não me regozijo a por cachecóis nem gorros nem luvas. Mas eu já sabia, assim que pus os pés no chão. Há quem tenha um mindinho que diz o tempo. Eu tenho meio corpo.
Agasalho-me o melhor possível e vou. Não sinto a perna até ao joelho, e a mão, por mais que a esconda no casaco, dói-me atrozmente. Coxeio de casa até à terapia. Torço o pé. Os olhos lacrimejam. O nariz escorre muco verde que não quis sair na noite anterior. Cruzo-me sempre com o mesmo homem no jardim. Vamos ambos em passo apressado, em sentidos opostos, os dois de fato-de-treino. Se chego atrasada cruzamo-nos junto ao parque infantil, se chego um pouco mais cedo, vejo-o em frente à antiga escola profissional/ palacete sombrio e abandonado mas que teima em ser imponente, mesmo na sua decadência.
Geralmente cruzo-me com o homem perto do café do parque. Ele aparenta ter cinquenta e tal anos, com um bigode digno dos anos 80. Olhamo-nos com interrogações lançadas pela curiosidade de quem se cruza há meses e não sabe mais nada do que especulações. Ele pensa “ela vai para a escola” eu penso “ele está desempregado”. Esta troca dura apenas uns segundos, o tempo de nos cruzarmos. E pensa-se tanta coisa em poucos segundos…
Falo nisto porque são estes poucos segundos que me distraem das dores, do frio que me roí. Não espero clemência de ninguém nem de nada, nem do frio perverso que se diverte ás minhas custas. Só os mais fortes resistem, é a lei da natureza, mas ainda mais forte é a lei da Daniela Furacão. E amanhã repete-se o processo de sofrimento, e depois, e depois, até que os primeiros rebentos surjam na cidade caótica que é atravessada no coração por verde e um enorme palacete feio onde os pombos cagam vezes sem conta, toneladas de merda branca. Se calhar é por isso que o palacete ainda se aguenta em pé, colado com merda de pombo com centenas de anos. Mesmo assim, qualquer pessoa que passe por ali, do turista ao jardineiro, não consegue tirar os olhos daquela magnifica estrutura. Mesmo que feita de pedra e de merda.
(Todas as coisas e seres têm um lado menos sublime para suportar a sua beleza.)
O Hospital é um sonho de criança em que se imagina num baile no Salão Nobre com vestidos vitorianos de cores alegres e margaridas a compor o cabelo comprido e ondulado. Eu pelo menos gostava que assim fosse. Que todos aqueles aparelhos e maquinas dessem lugar a corredores longos de promessas de amor e longas varandas cobertas de hera e tímidas flores brancas. Que médicos e terapeutas e doentes fossem na verdade membros de uma corte imaginaria com sorrisos pintados que nunca mais saíssem, e que os seus corpos exaltassem beleza e juventude, que os seus corpos fossem banhados pelas aguas quentes do interior da Terra em brincadeiras inocentes de quem não mostra o corpo mesmo colado as vestes húmidas.
Há um segurança que me cumprimenta sempre. Subo no elevador. Peço o cartão. Aguardo. Vou para a cabine. A humidade quente dói. Fogo com fogo se extingue. Fisio. T. O. . Ás sextas, também T. Fala. Três vezes por semana. Só três vezes por semana e custa. Preferia estar no Salão Nobre a dançar sem dores. Mas vulgarmente meto-me em auto-piloto e aqui vou eu. Acordo ao meio-dia e meia, e já não penso nem em homens de fato de treino nem em palácios de merda nem em nada. “Ir embora para casa” onde me espera o ócio e lambo as minhas dores como um gato vadio no covil. Não tenho comida na despensa porque não saio. Vou buscar uma sopa à pressa para voltar e como só para manter o estômago sadio, para não sucumbir à quantidade de químicos que como por dia. E durmo… Aí acordo feliz graças ao quente dos lençóis e à quase ausência de dor. Demoro um pouco mais a sair da cama, mas invariavelmente tenho que o fazer pois tenho de alimentar a minha cabeça de merda, não de pombo, mas de drogas lícitas que, ainda bem, me ajudam a não sofrer tanto. Amor com amor se paga. Afinal a lei a Daniela Furacão não passa de um desejo árduo de aguentar esta merda sem ir ainda mais baixo.
A lei da Daniela Furacão diz só isto; DESEMERDA-TE.
Comentários
Realmente tive o blog privado durante algum tempo, por uns motivos menos felizes, mas já passaram!
Bom, nas Caldas da Rainha nunca vi nevar ehehe. Eu estou em quarentena com o nariz assado de tanto assoar, só saio para a terapia e custa o suficiente!
És sempre uma nuvem de boa energia! Bom ter-te de volta!
beijo.
Miss you*************