A prisão

Olá de novo. Não me parece bom presságio a necessidade de voltar aqui. Música primeiro, por favor!



Relembro, com algum pesar, a paz que senti quando vim para esta casa. Eu, o Boris, um sofá emprestado e pouco mais. Não precisava de muito mais, na verdade. Das noites de dança descalça, desengonçada, com sorriso na cara porque era tudo tolice, as danças, as canções, os poemas que inventava para ele e ele, sem saber o que fazer, com aqueles olhos azuis gigantes, a correr ou deitado no sofá de barriga para cima. Aquela vez que me convenci que ele talvez gostasse de ir à rua e, mal tocou com as patas na rua se sentou, a olhar para a porta. Quando o levava à Marinha e ficava a miar que nem louco do lado de dentro da casa enquanto tentava fumar o último cigarro da noite.

Todas as vezes que chorei, que fiquei doente, ele fazia questão de estar colado a mim. Converteu todas as pessoas que cá vinham, "vá, o gato até é fixe", conheceu amantes e fantasmas, amigos e delírios, levava uma gravata ao veterinário. O veterano russo, que trespassava todas as almas com o olhar. Lembro-me de cair nos braços da veterinária quando finalmente me aprecebi que não podia fazer mais nada.

Com ele foram-se os amantes, os amigos, ficaram só os fantasmas. Eu em mim, a pensar no que deu errado sem dar valor ao que deu certo. De que vale que algo dê certo quando não tens com quem celebrar?

Vou sair daqui, não sei quando, não sei como nem para onde. Esta casa é uma prisão, um cemitério. O medo da incerteza bloqueia-me a audácia, que tanto me custa a ter. 

Um apartamento perto do mar? Uma casa na serra? E se todas elas se tornarem prisões? Sei que não vou conseguir fugir desta cabeça que não pára e é com muita dificuldade que faz o que preciso.

Tomara eu que o corpo não complicasse mais a vida. Há um ímpeto quase esmagador de sair. Tomara eu não carregar estas cruzes todas. As ausências são bem mais pesadas que os incómodos... como se estivesse em constante luto, carpideira muda, agastada pelas mortes de milhares de sonhos e promessas. 

Subitamente ocorreu-me que o Mário Branco escreveu "partir para ficar" como partir para tentar viver. Como a "ribeira de São Pedro de Moel (...) não consegue desaguar" e eu também não.

Queria muito pertencer já que nao encontro em mim propósito. "Quimeras, são só quimeras" escreveu o meu pai num poema que me leu quando era criança e que memorizei, estranhamente. 

E já vão 2 anos, 8 meses e 29 dias que o Boris deu o seu último suspiro neste sofá em que escrevo (e vivo). Ainda nem consegui abrir a carta lacrada da funerária. Ainda nem consegui comprar as flores dele. 

Temo que se for para a serra o isolamento fique ainda maior - se for possível, mas a prisão sou eu, que estupidez. A prisão é o meu corpo, a minha medicação e a minha inabilidade de ser cortês. E desta pago uma sentença perpétua... 

Gostava de poder recolher um pouquinho da dedicação e amor que fui dando gratuitamente, que já não me resta muito, e para mim já estou com saldo negativo. Quero pousar a espada e deixar que me levem, para o mar ou para a serra tanto faz, quero poder desistir.


"Era um sonho lindo" cantava o Fausto, mas esse acabou. Dá-me força para continuar sem ti ou coragem, que só me arrasto, derrapo, rasgo. Era um sonho de criança que sabia já que a vida é apenas isso, e que a sua importância é subjectiva. Gostava de abraçar-me com 3 anos e dizer-me que "tudo vai correr bem" mas iria mentir (como me faço com demasiada frequência).

Não sei como terminar, ora aí está.



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