Telefonema ou a súbita percepção de que não tenho mais paciência para agrados

 Um telefonema inesperado. Ao fim de mais de 10 anos, telefonam-me para averiguar se quero emprego. "Claro que sim" respondi. Naquele curto telefonema um mal-estar instalou-se assim que referi a minha última experiência de emprego. "Talvez não esteja interessada" ouvi do outro lado. Entre outros insultos (que são, não vou fingir que não o são, o género de insultos que ouço vezes sem conta quando tento arranjar trabalho e vale tudo - não é para mim porque estudei artes logo, i. e., sou irresponsável) a senhora (que tratei por "doutora" mesmo sabendo que não era doutora de merda nenhuma e que muito provavelmente arranjou aquele emprego por cunha, como já me apercebi que ocorre com muita frequência nesta cidade mas vá, já sei como funciona o mambo do ego e infelizmente sou o underdog e tenho que satisfazer, volta e meia, o ego de quem se acha superior) pediu-me, um pouco a contra-gosto, que me apresentasse nas instalações para me "conhecer melhor". "Não estou cá antes das 9h10, 9h15 e depois tenho que ir para outro lado" avisou-me. Quão precioso é o tempo daquela senhora e que me estava a fazer um favor supremo, um privilégio de perder tempo comigo, logo não podia abusar.


Aquele telefonema foi o suficiente para me foder o dia inteiro. Pensei, todavia, que deveria ir, nem que fosse para apaziguar a minha consciência. 


Acordei às 7h30. Chamei um táxi às 9h para ir às instalações que ficam no quinto dos caralhos. Os taxistas nesta cidade parece que nos fazem um favor e geralmente não atendem, é preciso insistir. Foi o que fiz até conseguir um, que me levou lá, arrotei mais de 6 paus e ainda lhe dei 1€ de gorjeta inesperada porque queria facilitar-lhe os trocos e ele interpretou que era uma gorjeta, e ao ver o homem tão feliz por ter ganho 1€ não tive coração para lhe dizer que não gorjeta. Adiante. 


Chego às instalações às 9h40 porque o mundo não gira à minha volta. Entro e peço para falar com a "doutora". A outra "doutora" na recepção perguntou-me se tinha marcação (nessa altura procedi a explicar-lhe o combinado). Informou-me que já se tinha ido embora porque, afinal, "já eram 9h45".


Chamei um táxi para voltar para casa, quando me ocorreu avisar a "doutora" que me encontrava nas instalações mas que infelizmente não tinha ido a tempo. "Pois, como não disse nada e estive à sua espera desde as 9h tive que sair" (9h? Haja paciência). "Mas está com sorte porque ainda estou na cidade e passo por aí para conversar consigo". Neste momento deveria estar eternamente grata àquela alma (creio que ainda estava na cidade porque muito provavelmente foi tomar o pequeno almoço ao café como vi tantas vezes outros fazerem. Nada contra).


Entretanto o táxi chega e tive que pagar a viagem do homem. Engraçado que esse atendeu rápido, sorte do caralho. 


Eventualmente chega a "doutora" e vamos para uma sala. Disse-me de imediato que o trabalho era difícil, muita pressão, que tinha 7 pessoas para a vaga. Procedeu a questionar-me sobre últimas experiências de trabalho. Falamos um pouco ao que ela se lembrou "não trouxe o seu CV?" 

A minha bola de cristal não me preveniu. 

"Não trouxe comigo, mas poderei enviar-lho por email" disse. Olhou para ele e prosseguiu "vamos ter uma formação de Andares (para quem não sabe é um termo pomposo para as pessoas que limpam quartos de hotel) são 2 anos com estágio". Fitei-a e disse que essa formação não se adequava para a minha condição e, que como ela poderia ver no CV, que já tinha essa formação. "Ah, mas não são só andares, poderia até fazer animação turística (sempre foi o meu sonho divertir estrangeiros, qual cultura qual caralho, queremos é entretenimento), renovava os seus conhecimentos e ainda recebia cerca de 200€ por mês (referindo-se ao subsídio de alimentação). Voltei a fitá-la e disse que se fosse para gastar 2 anos da minha vida a estudar, seria para um doutoramento (um dia mais tarde, antes da morte ou assim). "E como é que que vai pagar o doutoramento?"disse-me (de notar a escalada de desdém nessa pergunta que se arrastou à que veio depois da minha resposta). " Quando chegar a altura procuro uma bolsa". "Em teatro?" "Numa área de investigação, provalmemete" respondi.

Nem sei o motivo de tanto interesse numa remota possibilidade que nem está em plano, não acrescentou nada ao propósito da minha visita. Adiante.

"Também vamos ter vagas em Setembro, é um trabalho mais leve e olhando para si parece-me mais indicado" e procediu numa conversa sobre auto-estima e coaching "tem que atrever-se a sonhar!" (momento Cristiana Ferreira, ela estava visivelmente feliz por me dizer algo que nem é preciso ter meio dedo de testa para se dizer). "Claramente, mas tenho 36 anos os meus sonhos têm que ter algum grau de realidade neles" respondi.

Pois. Shanty shenanigans só dão emprego a quem não tem um pingo de empatia. "Somos todos muito felizes no fundo, não é filho?" já cantava o Zé Mário.


Cheguei a casa com o mesmo sentimento de impotência e revolta sempre que estas merdas me acontecem. Ao telefone com a minha irmã disse-lhe "até que ponto estou disposta a ser enrabada?" creio que não muito, e de certeza que a minha tolerância à discriminação (não só por ser deficiente, creio que é por tudo) está a roçar o zero. E por não ver qualquer outra alternativa fico angustiada. Parece que estou a ver a vida a passar. Não existe igualdade de oportunidades (será que existem oportunidades?) estou confusa e com medo que a culpa disto tudo seja minha. Talvez o melhor mesmo seja estar quieta a ver a vida a passar. 

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