Um conto (quicky criativa em insónia)
Ela dormia, mas com o sono afetado por um sonho.
Acordou exausta. Não se recordava do sonho, mas foi isso que a fez acordar. Olhou para o despertador e verificou que estava na altura de se levantar de qualquer forma. Estava em água, possivelmente pelo sonho, talvez por um esgar febril. Todo o corpo dela reflete o peso de dias, semanas e até meses de cansaço. Não se questionava mais, no fundo ela era um autónomo, um número – servia para cumprir uma função.
Levantou-se, vestiu-se, lavou a cara com àgua gelada, engoliu um café à pressa e partiu rumo ao trabalho, o mesmo trabalho de todos os dias, semanas, meses. Não se recordava mais do início, se é que existiu um início. Isso já nem importava, ela não se questionava apenas o executava.
Apanhou o transporte, o mesmo transporte apinhado de pessoas que lhe davam encontrões, é só mais um dia, já nem reparava nas conversas, nos odores, nos olhares. Aqui o ódio é palpável, mas ela não sente o ódio porque ela não sente nada.
Numa das paragens entrou uma mãe com um filho de colo. Prendeu-lhe a atenção, não sabia porquê, talvez fosse da maneira como eles estavam vestidos de forma tão miserável, talvez fosse pela ligação que eles emanavam, um traço de humanidade no meio do caos. Ficou a observá-los de soslaio, a criança chorava e a mãe pacificamente tentava acalmá-lo. Havia nessa interação qualquer coisa de desconcertante, talvez porque a criança estava a chorar de fome e a mãe nada mais tinha do que palavras.
Os passageiros ficaram ainda mais agitados, e à medida que essa agitação foi tendo lugar, mais a criança chorava. Àquela mãe, nada mais restava e pôs-se a cantar.
Ela observava tudo isto e pela primeira vez sentiu algo, uma comoção que ela não conseguia descrever.
Ela apercebeu-se que a mãe não estava a cantar para o filho, com a mão estendida cantava uma música tradicional. “As cantigas não alimentam um estômago vazio”, pensou. No tom, no timbre da mãe algo de desesperante, como se a qualquer momento também ela irrompesse em lágrimas. Rapidamente os passageiros começaram a entoar frases e gritos que não era um muito perceptíveis no meio da confusão e do barulho, mas as suas expressões faciais denotavam violência, como se a qualquer instante aquela mãe pudesse ser agredida por estar a mendigar. O ódio era palpável e ela sentia-o.
Apesar de voz trémula, aquela mãe cantava realmente bem, não era a técnica não era a beleza do timbre em si, decerto que aquela música lhe dizia muito e cantava com doçura, e apesar de toda a comoção, ela só conseguiu ouvir a ternura e desespero daquela voz.
À medida que entravam e saíam passageiros, a voz daquela mãe foi sendo abafado no meio de todo aquele ruído e o choro da criança já não era perceptível. Já não os via mais, e à medida que o seu destino se aproximava, questionou-se pela primeira vez em muito tempo. Porquê? Para quê? Existia algum sentido capaz de explicar como uma mulher se vê atirada para a miséria com um filho nos braços? E o que é que ela poderia fazer? Ela não fez nada ficou apenas a observar. Deu-se conta que nunca tivera feito nada, apenas observava, deu-se ainda conta que a única coisa que ela algum dia tivera feito na sua própria existência era observar a sua vida de fora dela, como se tivesse um ecrã perante dela.
Uma amálgama de emoções subiu-lhe até à garganta, formando um nó. Não conseguia respirar mais. O pânico tomou conta dela e única coisa em que ela pensava era em sair. Aos empurrões violentos, conseguiu aproximar-se da porta de saída, mas ainda teve que esperar pela próxima paragem. Enquanto esperava, as pessoas reorganizavam-se no espaço, encostando-a totalmente à porta. Não conseguia mexer um único músculo. A música daquela mãe entoava-lhe na cabeça, de tal forma que ela sentiu que era imperativo fazer algo, havia um sentimento de urgência que ela não sabia descortinar muito bem qual era, nem o seu motivo e nem o seu objetivo.
A espera parecia-lhe uma eternidade. Tomada pela angústia começou a sentir o ódio, mas não era um ódio gratuito como o ódio que os passageiros sentiam - esse ódio, esse fervor tinha uma raiz muito mais profunda, que no fundo era uma frustração inqualificável, fruto da impotência. Na sua cabeça passavam imagens de prédios a arder, como num cenário de guerra. Ela queria guerra porque queria justiça, porque se justiça dos homens tem dois pesos e duas medidas, e a justiça divina não actua talvez, mas só talvez, estivesse na hora de entre encetar uma rebelião.
A porta do autocarro abriu-se finalmente e ela não tinha mais força e caiu. Fitando o chão, vomitou violentamente. Não conseguia olhar ao seu redor e a agonia tomou conta dela. Após ter vomitado profusamente, não conseguiu recuperar o fôlego e respirava rapidamente, como se todo o ar que inspirasse não fosse o suficiente. Estava trêmula, sentia-se frágil, e o desespero era tanto que irrompeu em choro. Soluçava de tal forma que da sua garganta saíam esgares que nem ela conseguia perceber como era possível que o seu corpo produzisse sons tão medonhos.
Os transeuntes que por lá passavam reparavam naquele espetáculo deplorável, mas optavam por não ver, à semelhança daquela mãe de mão estendida. No fundo ela já não era invisível para si própria, mas continua invisível para os outros.
Levantou-se a custo, rumo a lado nenhum. Cambaleava na rua em pranto, e nem reparava os olhares que a julgavam. A sua mente já se tinha dissociado do seu corpo e não era mais uma pessoa, talvez o animal movido pelo medo.
O corpo começou a falhar-lhe e caiu. Desta vez apenas rolou, ficando de barriga para cima e apercebeu-se que o céu era bonito. Já muito tempo que ela não olhava para cima, e ficou assim, prostrada no chão, estonteada pela beleza do mundo.
Acordou exausta. Não se recordava do sonho, mas foi isso que a fez acordar. Olhou para o despertador e verificou que estava na altura de se levantar de qualquer forma. Estava em água, possivelmente pelo sonho, talvez por um esgar febril. Todo o corpo dela reflete o peso de dias, semanas e até meses de cansaço. Não se questionava mais, no fundo ela era um autónomo, um número – servia para cumprir uma função.
Levantou-se, vestiu-se, lavou a cara com àgua gelada, engoliu um café à pressa e partiu rumo ao trabalho, o mesmo trabalho de todos os dias, semanas, meses. Não se recordava mais do início, se é que existiu um início. Isso já nem importava, ela não se questionava apenas o executava.
Apanhou o transporte, o mesmo transporte apinhado de pessoas que lhe davam encontrões, é só mais um dia, já nem reparava nas conversas, nos odores, nos olhares. Aqui o ódio é palpável, mas ela não sente o ódio porque ela não sente nada.
Numa das paragens entrou uma mãe com um filho de colo. Prendeu-lhe a atenção, não sabia porquê, talvez fosse da maneira como eles estavam vestidos de forma tão miserável, talvez fosse pela ligação que eles emanavam, um traço de humanidade no meio do caos. Ficou a observá-los de soslaio, a criança chorava e a mãe pacificamente tentava acalmá-lo. Havia nessa interação qualquer coisa de desconcertante, talvez porque a criança estava a chorar de fome e a mãe nada mais tinha do que palavras.
Os passageiros ficaram ainda mais agitados, e à medida que essa agitação foi tendo lugar, mais a criança chorava. Àquela mãe, nada mais restava e pôs-se a cantar.
Ela observava tudo isto e pela primeira vez sentiu algo, uma comoção que ela não conseguia descrever.
Ela apercebeu-se que a mãe não estava a cantar para o filho, com a mão estendida cantava uma música tradicional. “As cantigas não alimentam um estômago vazio”, pensou. No tom, no timbre da mãe algo de desesperante, como se a qualquer momento também ela irrompesse em lágrimas. Rapidamente os passageiros começaram a entoar frases e gritos que não era um muito perceptíveis no meio da confusão e do barulho, mas as suas expressões faciais denotavam violência, como se a qualquer instante aquela mãe pudesse ser agredida por estar a mendigar. O ódio era palpável e ela sentia-o.
Apesar de voz trémula, aquela mãe cantava realmente bem, não era a técnica não era a beleza do timbre em si, decerto que aquela música lhe dizia muito e cantava com doçura, e apesar de toda a comoção, ela só conseguiu ouvir a ternura e desespero daquela voz.
À medida que entravam e saíam passageiros, a voz daquela mãe foi sendo abafado no meio de todo aquele ruído e o choro da criança já não era perceptível. Já não os via mais, e à medida que o seu destino se aproximava, questionou-se pela primeira vez em muito tempo. Porquê? Para quê? Existia algum sentido capaz de explicar como uma mulher se vê atirada para a miséria com um filho nos braços? E o que é que ela poderia fazer? Ela não fez nada ficou apenas a observar. Deu-se conta que nunca tivera feito nada, apenas observava, deu-se ainda conta que a única coisa que ela algum dia tivera feito na sua própria existência era observar a sua vida de fora dela, como se tivesse um ecrã perante dela.
Uma amálgama de emoções subiu-lhe até à garganta, formando um nó. Não conseguia respirar mais. O pânico tomou conta dela e única coisa em que ela pensava era em sair. Aos empurrões violentos, conseguiu aproximar-se da porta de saída, mas ainda teve que esperar pela próxima paragem. Enquanto esperava, as pessoas reorganizavam-se no espaço, encostando-a totalmente à porta. Não conseguia mexer um único músculo. A música daquela mãe entoava-lhe na cabeça, de tal forma que ela sentiu que era imperativo fazer algo, havia um sentimento de urgência que ela não sabia descortinar muito bem qual era, nem o seu motivo e nem o seu objetivo.
A espera parecia-lhe uma eternidade. Tomada pela angústia começou a sentir o ódio, mas não era um ódio gratuito como o ódio que os passageiros sentiam - esse ódio, esse fervor tinha uma raiz muito mais profunda, que no fundo era uma frustração inqualificável, fruto da impotência. Na sua cabeça passavam imagens de prédios a arder, como num cenário de guerra. Ela queria guerra porque queria justiça, porque se justiça dos homens tem dois pesos e duas medidas, e a justiça divina não actua talvez, mas só talvez, estivesse na hora de entre encetar uma rebelião.
A porta do autocarro abriu-se finalmente e ela não tinha mais força e caiu. Fitando o chão, vomitou violentamente. Não conseguia olhar ao seu redor e a agonia tomou conta dela. Após ter vomitado profusamente, não conseguiu recuperar o fôlego e respirava rapidamente, como se todo o ar que inspirasse não fosse o suficiente. Estava trêmula, sentia-se frágil, e o desespero era tanto que irrompeu em choro. Soluçava de tal forma que da sua garganta saíam esgares que nem ela conseguia perceber como era possível que o seu corpo produzisse sons tão medonhos.
Os transeuntes que por lá passavam reparavam naquele espetáculo deplorável, mas optavam por não ver, à semelhança daquela mãe de mão estendida. No fundo ela já não era invisível para si própria, mas continua invisível para os outros.
Levantou-se a custo, rumo a lado nenhum. Cambaleava na rua em pranto, e nem reparava os olhares que a julgavam. A sua mente já se tinha dissociado do seu corpo e não era mais uma pessoa, talvez o animal movido pelo medo.
O corpo começou a falhar-lhe e caiu. Desta vez apenas rolou, ficando de barriga para cima e apercebeu-se que o céu era bonito. Já muito tempo que ela não olhava para cima, e ficou assim, prostrada no chão, estonteada pela beleza do mundo.
Comentários
Um abraço, Morga.