Este último mês foi desafiante e não encontrei força para escrever até receber um mail de um professor meu, em que relatava, entre muitas outras coisas, o facto se se encontrar hospitalizado. Respondi-lhe com uma centelha de todas as emoções sentidas e pensamentos que tive ao longo deste tempo, tão intenso que nem me atrevi a escrever.
Nota para o meu pai (sim, eu sei que me lês): a referência que fiz sobre ti sabes que é verdadeira mas não deixo de amar-te por isso.
Aqui vai:
Querido professor,
A minha avó costumava dizer que os ruins morrem tarde. Ela morreu com 60 e poucos anos de acidente, ela e a minha tia. O meu pai, por outro lado, apanhou covid (fumou mais de 30 anos) e pensei mesmo que não se ia aguentar. Há uns dias atrás telefonou-me (que não é nem hábito nem sequer comum) a dizer que já se sentia melhor e que já tinha tido alta. Por essa altura (natal, como é bom o natal) andava a correr com o meu gato para o veterinário - leve-o lá por uma suspeita de cárie e nem 2 semanas depois morre-me no colo com cancro. É mais fácil quando o sofrimento e o medo é nosso.
Com tudo isto, exausta, em privação de sono e meia refeição por dia (é difícil comer quando se chora) o meu lado niilista volta, ao mesmo tempo que volta o estóico e ficam a brigar e eu desisto.
A morte é fácil, gostaria de morrer como o meu gato, a ouvir johnny cash, em casa, sem mais dores. A esperança é que fode tudo, esperança que as coisas fiquem melhores. Nunca ficam, no máximo ficam diferentes.
Pelo menos tens uma vista e podes ler. O dostoievski é louco (estava a ler o idiota antes desta merda, na sequência do jogador e do crime e castigo. Fiquei na parte do príncipe michkin foi para a casa de campo e travou conhecimento com os revolucionários e se apaixonou pela 2a vez - não creio, no entanto, que esse personagem sentisse paixão como nós). É louco porque é sublime e aditivo, como o tabaco. Os personagens dele fumam também, creio que ele também fumasse.
Em relação ao tabaco, penso que fumar não é um acto per se. Fumam os porque existe a necessidade de parar para pensar. Nunca se fuma absorto. Fuma-se também por companhia, um exemplo rápido - se estiver numa esplanada sozinha a observar a vida, fica menos estranho fazê-lo com um cigarro pendente nos lábios. Seguindo este raciocínio, o cigarro é o que nos distância de parecemos loucos ao olhar alheio. Não quero com isto dizer que todos os fumadores são potenciais génios, ou loucos ou outra coisa qualquer. No caso dos niilistas, é normal que fumem.
Há toda uma convenção social não explicita sobre o tabaco que faz com que o acto de fumar seja apenas isso e ainda bem - não desejo explicar a ninguém o que penso enquanto fumo.
Ninguém nos prepara para a decadência da matéria. Veias entopem, rebentam, todos nós sabemos o que devemos fazer e nem fazendo-o nos garante nada. Não sabemos lidar com a morte (a nossa e a dos outros) nem com o sofrimento e, o que parece tão simples, passa a ser uma guerra. Penamos para continuarmos vivos. Aquela esperança crónica de origem cristã ou aquele medo primitivo, não sei bem.
Aproveita a vista. Da minha casa não vejo nada, então tenho os estores corridos. E aproveita para reparar na cadência dos som dos aparelhos, lembro-me prefeitamente das que ouvi.
Ocorreu-me que, já que nada somos e estamos presos à vida, que vivamos intensamente (mais poético que prático, o que quero dizer é que até as coisas mais mundanas têm alguma beleza, como o luto tem, na prática é uma merda mas se não fosse a poesia já me tinha atirado da ponte, fazendo referência ao dostoievski). E, no fundo, estamos a acelerar o processo de decadência e morte, estamos todos a atirar-nos da ponte, cada um ao seu ritmo, com mais ou menos noção. Somos todos masoquista e não sabíamos.
Vai escrevendo enquanto estiveres aí, ajuda a organizar o pensamento (é melhor organizar o pensamento, pois não tive essa hipótese nem janelas para olhar e juro que quase enloqueci). Vive essa merda intensamente e anota, concerteza que isso vai fazer com que escrevas e penses coisas extraordinárias (não digo boas).
Cá te esperamos, com ou sem cigarro na mão.
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