A Casa


Casa nova, colchão no chão, mesa com 4 cadeiras e um sofá vermelho emprestado. Agora moro só. Tenho como companheiro um gato amarelo que tirei da rua – a idade dele é uma vasta experiência de luta. Comporta-se como um gato velho, mas deverá ter uns 3, 4 anos no máximo. As patas dianteiras, pescoço, bíceps e ombros são desproporcionais ao seu tamanho, apesar de ser um bicho grande. Massajo-o todos os dias e sinto as pequenas contracturas. Ele deleita-se.
Na casa não há TV, o acesso à internet tem que ser bastante racionalizado, e para além dos livros sobre teatro, tenho outros 4, 2 deles já lidos. Estou doente há uma semana e ainda tenho que ficar indoors mais um tempo. Tenho uma vizinha que tem uma cadela, a princesa, e honestamente não sei qual delas a mais irritante. Não os vejo, só os ouço. A vizinha levanta-se e fala com a cadela (imagino que seja uma espécie de caniche branco, talvez por serem irritantes), e a conversa é sempre a mesma, até o papagaio do vizinho já apanhou “vais apanhar!”. Acho que eu e o papagaio estamos no mesmo grau de saturação. Muitas vezes apetece-me abrir a janela e gritar “SHUT THE FUCK UP!!”, mas tenho que me integrar na sociedade, é isso que é suposto, certo? Tenho 32 anos, se não o fiz até agora dificilmente o vou fazer.
A filha de outra vizinha é uma bimba. São inúmeras as vezes que já ouvi discussões (monólogos) dela com a mãe. A miúda teça todo um psicodrama que até dá dó. Chora, grita, manda a mãe para o caralho e, para além disso, levo pauladas cerebrais de regatton e bimbalhices do género. Daquelas miúdas que foram concebidas para (literalmente) encher chouriços.
For last but not least, as amigas boom. Já me cruzei com algumas na rua. Estilinho típico freak esadiano (ref: pessoa que estudou na ESAD), tipo freak-chic, uma delas tem um bebé. O bebé berra a tarde toda (deve ser da ressaca de todo o MD, LSD e outra siglas acabadas em D que a mãe tomou durante a gestação) mas nisso estou na boa. A melhor parte são as sessões diárias (2 a 3x por dia) de amor e magia que têm a espalhar através da música – trance. A música trance só provoca em mim (à semelhança de regatton e cenas) um profundo estado de épá… raiva. Não gosto do admitir, mas é verdade. Assim, ao invés de responder com uma linda Nina Simone, Elza Soares, Jacques Brell ou Edith Piaf, levam todos com Pissed Jeans, Peaches, La Femme, e quando estou mesmo passada, Diamanda Galás (são só exemplos).
Mas eu não odeio pessoas, isso acontece na adolescência. No fundo, acho-as fascinantes. Adoro observá-las, as suas conversas e preocupações mundanas ou utópicas, mais ou menos interessantes. E, para se ser observador, temos que nos distanciar. Eu comecei a distanciar-me antes ainda de saber escrever, mas guardo na memória alguns pensamentos de então. Antes de ser seja o que for, sou escritora – não o digo de animo leve. Acho até que é a primeira vez que o afirmo. Escrever, para mim, funciona como um estado estéreo que me suspende acima da matéria, em que não existe mais nada do que um fluxo neurólogico a par com doses excessivas de dopamina. Melhor que qualquer provocação física ou emocional. Como se atravessasse tudo ao mesmo tempo. Uma explosão de deleite indescritível. E, como finalmente tenho tempo para o fazer livremente, voltei.
A casa garante-me uma privação de coisas acessórias, e eu garanto-me, por vezes, de qualquer contacto social. Não sei até que ponto isto será saudável – existem dias que trepo paredes. A minha relação com a solidão é dúbia, o que é inegável é que necessito dela. Talvez por isso tenha um gato como companheiro. Por vezes dizem-me que preciso de arranjar um namorado, ou que não arranjo por ser demasiado exigente. Talvez deseje o impossível. É bem possível que deseje o impossível. Mas, como em tudo, insisto até que se torne possível. E aí deixo de o desejar e passo a desejar uma outra coisa.
Cresço, tudo em mim é maior do que transparece. Todas as minhas características, das mais mesquinhas às mais altruístas. Tenho noção de cada uma delas, e finto-as de forma a não parecer socialmente tão estranha. E ser estranho, o que tantas pessoas procuram, ser único, é duro. É necessário ter uma predisposição para tal, uma boa dose de traumas (traumas reais, não fictícios que as pessoas alimentam por atenção) e um grande e longo percurso dentro da solidão. Porque ela não é um buraco negro; só o é quando se quer. É possível entrar e sair, criar, amar nesse lugar. E amar esse lugar. Aí funciona como uma bolha onde tudo é tudo e colhes o que queres fazer nesse momento, sentir nesse momento, criar nesse momento. Acabas por ter o controlo total de tudo que te acontece porque foste o responsável directo por tudo que criaste. E isso, meu amigo, é a verdadeira liberdade. Não se pense que a liberdade é fácil, como não é a solidão. Por vezes queremos não ser livres. A maior parte das pessoas confunde o conceito de liberdade com não ter responsabilidades. A liberdade não é um conceito global, é particular e feito das muitas decisões e opções tomadas. A liberdade é, por excelência, um lugar de solidão. Não se pode ser livre com outra pessoa. Então eu respondo que não quero ninguém, nem filhos. Há-de chegar a altura, se chegar. Por enquanto não surgiu ninguém que fosse digna de abrir mão deste estado. Talvez dificilmente chegará, é uma grande moeda de troca logo tem que ser alguém que me arrebate. Como não sou de fácil arrebatamento (só acontece com a arte) talvez não aconteça. E não me alarmo com essa possibilidade.
O Boris está a requerer a minha atenção há umas horas. Já saltou para o teclado, já se sentou à frente da minha cara, já miou incansavelmente. Ele, como eu, é uma alma velha. E devo respeitar o seu pedido que se resume a uns minutos de atenção. Porque os gatos nos olham nos olhos e atravessam-nos. São apogeu de qualquer Ser realmente livre. O Boris, à semelhança do Ian, escolheu prender-se a mim. E eu sou livre porque gosto do afagar da mesma forma que ele gosta de o ser. Vibramos na mesma frequência. Talvez encontre uma pessoa que vibre na mesma frequência que a minha.      

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