Ausência

Pergunto-me como não estou ainda imune à decepção, àquela dor que fere bem no fundo e nos bloqueia a traqueia, pergunto-me como não estou ainda imune à esperança. Não sou um ser de luz, desengana-te. Sou um buraco do mais negro que por ser tão negro consome-se a ele próprio. Nula, sou invisível. Como posso não esperar nada e depois sentir-me desprovida do que consegui reunir de mim?

O AVC MATOU-ME, CONDENOU-ME, pior que isso, fodeu-me todas as perspectivas de felicidade que posso vir a ter, eu sou uma mulher ambiciosa, quero mais, mas o mais não está ao meu alcance. Hoje, 10 anos após o infortúnio, 31 anos, semi-humana que erra repetidamente em dar um pouco que si a cada um em troca de uma remota esperança que me faça ter forças para viver, pois meu amigo, morrer é tão mais fácil e tranquilo....

Olham para mim, desejam-me, alguns têm-me mas depois de juras loucas vem a faca, sempre a mesma faca, "não quero uma relação" eu respondo "tranquilo" e fujo para o covil, coser o pedaço do órgão que lá deixei. A hemorragia há-de estacar, até que o cérebro se der ao luxo cortar o ponto-cruz. Eu compreendo o ser humano; é embaraçoso passear com uma miúda que anda de forma estranha. E que dirão os amigos? A família com certeza pensará "como vai ela pegar num bebé?". É legitimo, errado, desonesto e incrivelmente cobarde da vossa parte, da parte de todos vós, seus merdas de rapazolas que me retalharam a este ponto, ao ponto de já nada ter, nada ser. Vocês todos são um peso que me aprisiona a casa, roubaram-me o sorriso, a gentileza, a paciência, graças a vocês tenho uma cicatriz que me atravessa a espinha e no lugar do coração bombeia uma tâmara seca.

Pior que a morta, apenas isto, acordar desejando adormecer, fitar o tecto durante horas, a pensar, a penar. Todos o que trago comigo tornaram-se fantasmas em que vejo sempre as mesmas caras, palavras, promessas, sorrisos. Não consigo odiar então odeio-me. Mas que vos preocupa isso? Nada. Então digo-vos, com toda a certeza, a verdadeira deficiência é, e sempre será, a falta de colhões para romper com regas, prazos, desculpas, impostos pela sociedade que tantos anseiam por agradar. Talvez não seja de facto a mulher para vós. Uma mulher requer um homem como parceiro (sorry LGBT friends, but i'm straight and you know it...) e não um merdinhas que está à espera de ter uma relação com uma nova mãe/ criada/ túmulo.

Já não acredito no amor, nem tão pouco ser agraciada com sorte semelhante. Sempre ouvi dizer "nasce-se e morre-se sozinho". Nunca pensei ter que passar pela vida também na solidão.

Comentários

Unknown disse…
Daniela, a vida pode ter-te dado uma valente bofetada, deixado marcas profundas, e mostrar a verdadeira face da realidade, mas essa injustiça também tornou-te mais forte e mais sábia, talvez um dia no passado tenhas vivido sob a natural cegueira do comum dos mortais (a ignorância), mas agora não, foste iluminada pela sabedoria da experiência... muitas vezes injusta e dolorosa. O importante é levantares-te (e desculpa a expressão) com o caralho erguido e continuares a luta de punhos cerrados e um sorriso na face... quando te faltarem as forças, mantém o sorriso.
E quando te faltar tudo e a raiva for a única coisa que te mantém, lembra-te que o ódio também dá força, traça objectivos e dá significado à palavra viver.

"It's a hard and rough way
And sometimes It hurts
But I'm already back again
Much stronger than before"

https://www.youtube.com/watch?v=KdFNafVwcqM
A mim, preocupa-me. E se o AVC foi a inevitável inexplicável estúpida fatalidade do destino, a atitude das pessoas (neste caso específico, estou a falar dos rapazes que mencionas) depende delas mesmas, e encontra-se de tudo neste mundo. Sim, pode ser uma ave rara e difícil de encontrar, mas eu torço para que seja "sooner than later" que encontres alguém que seja inteligente o suficiente para não se deixar intimidar pela limitação física, e que apesar dos seus defeitos te ame, como mereces, pela pessoa que és. Com entrega e genuinidade, sem se aproveitar nem fingir.

Falo em nome dos rapazes: sei que somos o que somos, mas também há em nós quem seja diferente.

E digo para que não tenhas dúvidas: mesmo a toda esta distância (física e de tempo) que há entre nós, ainda assim seria um duro golpe perder-te. "És de ouro, Morga". Falava a sério quando o escrevi.

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